Sobre o Vietnã, o Sri Lanka e o nascimento (ou descoberta) da minha criatividade.
Aos 30 anos de idade, descobri que existia um ser criativo dentro de mim. Hoje, aos 47, ainda me impressiono com a surpresa que o fato me causou.
Até essa fatídica missão de 3 meses em Hanói, eu sempre tinha sido considerada a organizada, a responsável (o que nunca foi verdade, mas era a imagem que eu projetava), a pessoa cordata que acreditara ser mais importante ter uma "profissão de verdade" do que descobrir quem eu queria SER de verdade.
Dos 5 aos 16 anos,
A única forma que eu tive para me expressar foi fisicamente, por meio de malabarismos e acrobacias que arrepiavam os cabelos de espectadores que assistissem aos treinos de trampolim acrobático.
Mas, quando deparada com o futuro e o vestibular, fui facilmente convencida de que aquele não passava de um hobby.
As minhas muitas tentativas ao longo da vida de dar voz à minha escrita, às minhas histórias, acabavam sempre sendo achatadas pela crença arraigada de que eu não era uma pessoa criativa.
De que eu não levava jeito para isso.
Entre uma faculdade de direito que foi tão empolgante quanto ter frieira de pé, e uma vida social cercada por muito tabaco e manguaça, eu deixava pouco espaço mental para sequer investigar que tipo de criação sairia de mim
Se eu permitisse.
Eu não compreendia a claustrofobia que sentia com a profissão que havia escolhido, ou imaginando a vida que levaria se passasse em um dos muitos concursos que prestei por anos,
Sem qualquer sucesso.
Passei a acreditar que não era inteligente, sem compreender que me auto-boicotava pois nenhuma daquelas escolhas me pareciam atraentes. Eram apenas as menos piores, de acordo com uma visão muito limitada do universo de opções que existia lá fora.
A aprovação para ser oficial de chancelaria do ministério das relações exteriores veio não como a carreira dos meus sonhos, mas como a chance de mudar para Brasília, de me distanciar da vida que levara até então, de conseguir a sonhada independência financeira e, assim, começar a encontrar caminhos que, ao menos, eu tivesse curiosidade de percorrer.
E foi aí que uma missão de três meses no Vietnã mudou a minha vida: eu não sei se foi o choque do fuso horário ou o simples fato de estar do outro lado do mundo, mas sei que, do momento em que lá cheguei, o processo de reinvenção e descoberta começou. Muitas vezes com coisas banais como atravessar a rua, atividade que em Hanói dá direito a trilha sonora do Indiana Jones ao fundo.
Por alguma razão que não sei bem explicar, não me atirei naquele mundo de aventura de cabeça.
Mesmo tendo sido criada em uma cidade como São Paulo, pareceu que perdi minha desenvoltura. E a melhor comparação que me vem à cabeça é a de que comecei a explorar como um camundongo, que dá uma corridinha até ali e volta.
Tá, deu tudo certo, então se aventura um tantinho mais além. Pára, dá uma espiada, e assim vai seguindo cada dia um pouquinho mais longe.
Quando me vi, estava fazendo minha primeira viagem dentro do país, no famoso estilo roubada, mas que também tirou o meu medo: se eu sobrevivera a uma viagem noturna de trem à região que faz fronteira com a China, dormindo em uma cabine com 5 vietnamitas que só faziam comer salgadinhos fedidos e peidar, eu enfim estava pronta para o que desse e viesse.
Conheci pessoas e lugares incríveis. Aprendi mais em 3 meses no sudeste asiático do que em 5 intermináveis anos de universidade, me vi em situações surreais e bizarras com as quais fui entendendo como lidar, e saí de lá com a ciência de que aquela viagem fora
O maior divisor de águas da minha vida.
A fotografia, a escrita e o pé na estrada, que sempre fizeram parte de mim de uma maneira ou de outra, alí tomaram a forma de prioridade, de via de acesso, de expansão, de crescimento. A contadora de histórias que existe em mim absorvia tudo e queria compartilhar suas descobertas.
Assim surgiu o blog no qual postei fotos e relatos embasbacados de uma pirralha de 30 anos de idade, deslumbrada com a liberdade de poder ser quem quer que eu quisesse ser.
Uma vez de volta ao Brasil, a outra jornada essencial da minha vida também teve início: a da prática de yoga. É como se a viagem ao oriente tivesse conectado um fusível que eu havia deixado de lado desde os 16 anos, quando desisti de fazer trampolim acrobático.
Os anos foram passando e fui integrando todas essas novas habilidade em minha vida de maneira mais permanente. Fui melhorando como fotógrafa, como escritora, passei de viajante a nômade, me dediquei à yoga o quanto minha vida corrida de servidora pública me permitiu. Até o dia em que percebi que estava vivendo com um pé em cada canoa, e isso estava na iminência de dar em desastre.
Minha primeira licença para tratar de interesses particulares veio da necessidade de quebrar com padrões que estavam me fazendo mal. E após muitas mudanças, internas e externas, enfim me desfiz de quase todas as minhas posses e literalmente
Desenraizei.
Passei os próximos 3 anos vivendo com uma mala de 23kg, meu computador, minha câmera e meu passaporte.
A saga da Índia e minha vida de yogi se intensificou, e talvez mereça um post todo para ela. Mas foi quando cheguei ao Sri Lanka que um outro marco em meu crescimento pessoal teve início. O da tomada de consciência da pessoa criativa que eu ainda poderia ser.
Começou aos poucos, com expedições fotográficas na garupa de uma moto, ou nas tentativas de descrever aquele lugar aparentemente tão parecido mas tão diferente da Índia.
Os estímulos vinham de todos os lados, de uma maneira muito mais intensa. O ônibus que parecia uma discoteca piegas, as comidas picantes mas que traziam conforto, os templos devocionais que evocavam silêncio, o jardim botânico de mais de 300 anos. Talvez por ser muito menor, esse foi um país que me senti mais à vontade para explorar.
Ou talvez por que estava em companhia de um grupo de yogis viajantes que, como eu, encontravam-se em algum estágios do caminhos de auto-descoberta.
Mas a grande mudança interna foi possibilitada, mesmo, em uma plantação de chá nas montanhas cingalesas.
Esse foi o local em que nosso grupo residiu por um mês e meio, entre práticas matinais, comida simples, e o resto do dia imersos na natureza, nadando em cachoeiras, meditando, contemplando, compartilhando experiências.
Um ambiente perfeito para não fazer nada, e acabar sendo mais produtivo do que jamais se sonhara. Ou pelo menos assim foi para mim.
Uma vez mais, não sei precisar o momento em que senti um clic interno que me disse, claramente, que a criatividade que eu sentia naquele lugar era algo essencial para a pessoa que eu queria ser.
Agora, já não eram mais só relatos do que eu via, tentativas de registrar momentos, palavras descritivas do que eu sentia. Os primórdios das histórias fictícias que contariam o que eu queria expressar começaram ali, naquele vale de arbustos de chá, de gente simpática, de hábitos simples, de comunidade.
De tranquilidade.
De silêncio.
Compreendi, aos poucos, que para mostrar quem eu era a melhor forma seria criar mundos, personagens, enredos inventados, mas que refletiam as minha verdades internas. Jamais me senti tão eu mesma como quando usei meus anseios em diálogos que nunca aconteceram na vida real,
Apenas em minha imaginação.
E foi a validação desse mundo interior que me levou a tantas outras escolhas mais tarde.
Escrever roteiros, escrever newsletters, escrever romances, contos, histórias de animação, me permitir publicar ensaios poéticos que eu nem sabia que tinha dentro de mim.
Em português.
Em inglês.
Em qualquer forma de expressão que mostre o que me vai dentro.
Tudo isso foi acessado, pela primeira vez de forma consciente, em uma plantação de chá nas montanhas do Sri Lanka.
E tudo isso só foi possível pois, 7 anos antes, eu havia desistido de prestar o concurso para diplomata para o qual eu estava (meio que) estudando, e parti em uma missão transitória para o Vietnã.
Creio que tenho a tendência a sempre tomar o caminho mais longo para atravessar a rua,
Rodando por quarteirões desconhecidos que acabarão me levando de volta ao conhecido.
Eventualmente.
Me permitindo ver
A mim mesma. Essa que eu carrego comigo por onde quer que eu vá.
Agora estamos na Dinamarca.
Eu, eu mesma e o gato. No momento, a criatividade está sendo usada para criar algo que não tenho há mais de 10 anos: um lar.
Chame de “retail therapy” se quiser, mas estou me divertindo nesse processo de adquirir coisas que, juntas, me ajudarão a aterrar e me sentir em casa.
Continuo sem poder me comprometer com nenhum tipo de regularidade, mas coisas estão sendo planejadas, projetadas e até, sim, escritas. Quando essa fase de resolução de problemas terminar, retomarei o ritmo.
Mas tenho algumas surpresinhas guardadas para já já. Quem vem junto?
Obrigada por ler, gostar e compatilhar.
E até já.