Tragédias Paulistanas #1: Amor e outras considerações
Qualquer semelhança com a realidade é um mero lembrete de que fazemos parte de um mundo real, em que pessoas normais vivem pequenas tragédias diariamente.
Olá! Meu nome é Pat Tischler e In-Sight é onde divulgo os vários textos e histórias que escrevo. Para quem acabou de chegar, bem vindx!
Se você não sabe o que esperar, tanto melhor. No meu primeiro post, conto um pouco sobre a minha trajetória e isso pode ajudar a compreender minha proposta.
O texto de hoje é um conto de ficção.
Aquele era um colégio de classe média como tantos outros. Em uma cidade com mais de 20 milhões de pessoas, cada região é um mundo a parte, e cada bairro é o seu próprio microcosmo. Neste colégio, em especial, adolescentes de outras regiões da megalópole paulistana vinham estudar, atraídos por preços acessíveis e ensino de qualidade.
O ano de 1992 foi cheio de acontecimentos que marcaram o Brasil. Esse foi o ano da Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e o Desenvolvimento no Rio, a ECO-92. Esse foi o ano em que Ulysses Guimarães morreu em um acidente de helicóptero e em que Daniela Peres foi assassinada. E este foi o ano em que Fernando Collor de Mello sofreu um impeachment.
Os alunos do colégio, organizados em grêmio estudantil, combinaram de faltar às aulas para se juntarem aos caras-pintadas na Paulista, no entendimento de que a diretoria não poderia dar falta coletiva se absolutamente todos eles não comparecessem.
E assim foi.
Mas essa não é uma história grandiosa, sobre movimentos maiores do que os indivíduos de que dela fazem parte. Ao contrário, essa é uma história individual, minúscula dentro desse universo de concreto, quase míope de tão pessoal. Essa é uma história de decisões e suas consequências, de pessoas normais fazendo o melhor que podem com os recursos à sua disposição, e de prioridades que conduzem as ações dos envolvidos, sempre com as melhores das intenções.
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Em uma manhã ventosa de fins de fevereiro, o primeiro dia do ano letivo se desenrola com a costumeira mistura de apreensão, entusiasmo e energia mal contida. Alunos novos que não sabem para onde ir, alunos que retornam abraçam com fervor aqueles que não encontravam há eternos três meses, novos interesses a serem descobertos, novas paixões que em breve se desvendarão.
A ampla escadaria que dá acesso à porta de entrada sofre com a passagem apressada dos que chegam. Pelos cantinhos, passam os que não querem ser vistos. Impedindo o trânsito, grupos ali mesmo se reúnem para colocar as notícias em dia, com a despreocupação de quem não se importa com o que acontece ao seu redor.
A vida tem uma forma engraçada de colocar no caminho das pessoas exatamente aqueles com quem elas devem interagir.
Assim é que a menina tímida teria passado despercebida, não fosse o encontrão que deu justo naquele menino meio brincalhão, que faz uma chacota apropriada, fazendo com que ela se sentisse vista, mas não colocada sob os holofotes.
Ao contrário, o barulhento grupo de rapazes nem repara no novato franzino, ignorando até mesmo a rapidez com que ele pula degraus para passar sem ser notado .
Mas nem todos os novos alunos se sentem desconfortáveis com as incertezas dos recomeços. Lídia é uma dessas pessoas.
Com seus mal-completos 16 anos, sobe os degraus da escadaria com a cabeça erguida e a postura confiante de quem nada tem a temer. Mais alta do que a média de sua idade, mais desengonçada do que sua adolescência deveria justificar, ela entra nesse novo mundo com aquela curiosa disposição de alguém que cresceu assistindo aos filmes de Indiana Jones.
Sua chegada acontece no mesmo momento em que o grupo de rapazes barulhentos resolve debandar. Correndo em direção a seu destino, eles passam na frente de todos que tentam cruzar as pesadas portas, sem se importar em mantê-las abertas para quem vem em seguida.
Exceto por Tobias.
De temperamento mais tranquilo, ele se destaca de sua matilha quando percebe Lídia aguardando para entrar na escola.
Ele segura a porta aberta, para a surpresa da menina.
Ela aguarda, quase o desafiando a que passe antes.
Ele faz um gesto para que ela vá primeiro.
Ela cruza os braços e o olha de cima, já que é mais alta que ele, com uma sobrancelha elevada indicando a descrença bem-humorada.
Antes que Tobias consiga reagir a um olhar assim desafiador, Lídia utiliza-se da porta aberta para voar para dentro, seguindo em passo seguro pelo corredor, enquanto é acompanhada por um olhar de entretenimento.
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Os dias passam, mas o inevitável tem uma maneira de confrontar os envolvidos, não lhes permitindo alternativa senão desempenhar o seu papel. E assim ocorre, ainda durante a primeira semana quando, no retorno do intervalo, o grupo de rapazes barulhentos se demora no corredor, justo no momento em que Lídia sai do banheiro.
Os risinhos e piadas não a afetam. Ela segue em direção à sala de aulas sem dar atenção às provocações dos garotos.
Tobias, uma vez mais, se diferencia por sua equanimidade e avisa:
— Sua saia...
— O que tem minha saia? Você gostou? Posso te emprestar um dia desses, se você quiser.
— Ela está presa.
Lídia se contorce para conseguir ver que sua saia ficara presa na calcinha. E começa, ela mesma, a rir da própria gafe. Ela solta a barra da saia, alisa bem a roupa se certificando de que, agora sim, tudo está em ordem, e dá uma volta para que Tobias e seus amigos apreciem o resultado.
— Está bom?
— Perfeito.
— E eu achando que todos os olhares eram porque meu cabelo estava bonito hoje.
Ela entra na sala, plenamente ciente dos olhares que atrai.
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No dia seguinte, Tobias uma vez mais se destaca de sua matilha quando vê Lídia comendo sozinha na cantina. Ele se senta do outro lado da mesa e se esquece de seu próprio lanche, entretendo-se com a voracidade com que ela devora o sanduíche e o suco de laranja.
— Qual o seu nome?
Ao ver o sorriso do menino, ela tira proveito:
— Você vai comer esse cookie?
Ele pega o cookie e o coloca na bandeja dela.
— Lídia.
— Eu sou Tobias.
Quando ela termina de comer, dispara:
— Você já foi no Pico do Jaraguá?
— Na Cantareira?
— Isso.
— Acho que não. Por que?
— Se quiser, um dia eu te levo. Dá para ver a cidade toda de lá de cima.
— Você mora perto?
— Sim. E você, mora onde?
— Aqui perto. Dá para vir a pé.
— Legal.
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Numa sexta-feira após a aula, pegam o ônibus que Lídia usa todos os dias para voltar para casa, mas passam do ponto dela e vão até o terminal. De lá, pegam outro ônibus que os leva até o Parque do Jaraguá.
Caminham entrando na mata, por trilhas que a menina conhece como a palma de sua mão. Nem reparam nas garrafas de plástico e bitucas de cigarro que sujam o caminho. Andam olhando para o alto, onde a densa folhagem oferece refúgio, para a borboleta azul que flutua com a brisa, para os periquitos que fazem estardalhaço na copa das árvores. Olham para tudo, menos um para o outro.
Chegam a um mirante e param, lado a lado, admirando a vista: quilômetros e quilômetros de selva urbana se estendem até o horizonte, formando um contraste de cores. O verde da mata forma uma linha fina, seguida do cinza do concreto, o azul acinzentado da poluição e só então o azul celeste do céu sem fim.
Ficam ali, parados, naquela proximidade distante o suficiente para não se encostarem, mas que permite uma mexa de cabelo dela chegar ao ombro dele, ou um cotovelo esbarrar em um braço ao mudar de posição. Enquanto seus olhos se fixam na distância, seus corpos sentem a proximidade um do outro em cada poro, em cada célula, em cada respiração.
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Da próxima vez que vêm ao parque, algumas semanas mais tarde, boa parte do desconforto do primeiro passeio já não existe. Os dias na escola passaram a ser regados de encontros propositais, de lanches tomados juntos, de descontração crescente.
Agora, já arriscam brincar, correm um atrás do outro, usam os troncos das árvores como barreira transponível naquele jogo de esconde-encontra.
Uma mão pega a outra, não deixa escapulir.
A mão fica, mas o corpo segue ao redor da árvore protetora, que é abraçada por conveniência, muito mais fácil o contato com a natureza do que com o outro humano.
A brincadeira, mesmo que ainda infantil, vai se revelando algo mais. O que será? Sem fôlego, as costas se encontram. Apoiam-se uma contra a outra. Fazem peso. Usam o contrapeso para abaixarem até o solo. Descansam. Apoiam a cabeça, um no ombro do outro. Bochechas se tocam.
Uma respiração.
Outra respiração.
Lídia, de súbito, fica de pé e corre, e Tobias aceita a isca e a persegue.
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Na escola, ficam sem jeito. Ainda não sabem o que pensam sobre tudo isso. Sobre o que sentem. Não. Nem querem saber. Fingem que não se conhecem na entrada, mas não conseguem parar de se olhar de esguelha.
Quando o outro vê, desviam.
Tobias não vem na hora do intervalo, fica na matilha, anonimato na multidão. Assim não precisa sentir. Lídia ainda não tem amigas com quem compartilhar. Senta só, mas quase não come. Aquele sanduíche parece desinteressante. Deveria ter comprado um cookie.
Na saída, Lídia enrola, vai falar com o professor, vai ao banheiro, demora bastante para lavar as mãos. Mas quando enfim deixa o prédio, encontra Tobias encostado no corrimão da escadaria. Só. O grupo de rapazes barulhentos se foi. A menina tímida se foi. O rapaz franzino tomou seu rumo. Assim como os professores. Todos já partiram para seguir com suas vidas.
Mas ele ficou. Mesmo sem saber o por quê.
Ela desce e fica de pé na frente dele, no degrau de baixo. As alturas, assim, se igualando. Não conseguem se olhar. Não conseguem se ignorar.
— E aí, Tobias.
Nada vem à cabeça do menino para dizer. Então chega seu rosto bem próximo ao dela e esfrega ponta do nariz com ponta do nariz.
— Beijo de esquimó.
Ela sorri, reconhece a brincadeira de quando era criança. Chega seu olho direito bem perto do olho esquerdo dele. Bate os cílios.
— Beijo de borboleta.
Não se afastam. Ele fica paralisado. Então assopra em sua orelha. Ela estremece.
— Beijo-arrepio.
A voz sai rouca.
Eles ficam novamente um bem de frente para o outro. Ela tenta dar um beijo em sua bochecha, mas ele vira.
Pega no canto.
Ela não se mexe.
Ele consegue sentir os pelinhos de seu rosto sendo tocados pela respiração dela.
Ela chega um tantinho para o lado.
Ele, um micro tantinho para frente.
Os lábios se encostam.
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Dessa vez, entram no parque caminhando mais lentamente, mais próximos, ombros que se esbarram, mãos que se encostam, e lá pela terceira ou quarta vez, se pegam. Não soltam. Mãos suadas, se exploram, se grudam.
Encontram a árvore que abraçaram da outra vez. Se reconhecem. Dessa vez, o abraço é de propósito, bem forte. Esta será a sua árvore, sua testemunha, sua confidente, sua protetora.
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No dia em que chegam à escola uma vez mais sem conseguirem se olhar, ou desgrudar o olhar um do outro, é o dia em que param, lado a lado, contra uma parede qualquer no corredor.
— Você está bem?
— Sim. Acho que sim.
— Okay.
Os pés de ambos parecem mais interessantes do que a correnteza de colegas que passam apressados. Um sorriso foge para os lábios dele. Um sorriso chega aos olhos dela.
— Você?
— Também.
— Okay.
As mãos que agora se unem, assim permanecem quando os corpos resolvem seguir o fluxo do movimento do corpo estudantil em direção à sala de aula.
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Nesse mesmo dia, chegam à árvore munidos de sanduíches para o almoço e mexericas de sobremesa. Tobias tira da mochila um estilete, que roubou da sala de educação artística.
— O que vai fazer com isso?
— Registrar a nossa presença.
Lídia observa enquanto Tobias entalha as iniciais dela, LF, Lídia Franco, e as dele, TM, Tobias Martins, e um círculo os unindo.
— Parece um balão.
— Era para ser um coração.
— Não, eu gosto, parece que estamos juntos na nossa própria bolha.
Eles deitam no chão em sentidos opostos, apoiando a cabeça no ombro um do outro. As linhas das árvores altas se convergem, a folhagem se move ao vento que também leva adiante as nuvens distantes.
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O sorriso amplo de Tobias quando a vê chegando trás calor às bochechas de Lídia.
— Para de ficar me olhando.
— Você é linda.
Se sentam na mesa da cantina, dessa vez, lado a lado. Ele repara que ela não começa imediatamente a comer.
— Não tem comida suficiente?
Ela pega o sanduíche, cheira, e o põe de volta no prato.
— Está tudo bem?
Ela toma um gole de coca, mas tem que forçá-la para dentro.
Ela fica pálida, e sai correndo para o banheiro.
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Eles se sentam com as costas apoiadas em lados opostos da sua árvore. Os rostos jovens não combinam com o olhar sério e preocupado. Ele estende a mão para que ela a pegue. Ao perceber que ela nem se move, Tobias se vira, fisga a mão de Lídia de seu colo, e entrelaça seus dedos bem firme.
— Vai ficar tudo bem.
— Como?
— Não sei. Mas vai dar tudo certo.
— Merda.
— Eu te amo.
Silêncio.
— Você me ama?
Lídia respira fundo: — Sim.
— Então vai ficar tudo bem.
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Na escola, eles se sentem, ao mesmo tempo, algozes e refúgio um do outro.
Ele entra apressado, mal a cumprimenta e já se junta ao grupo de rapazes barulhentos onde pode não ser ele, Tobias, o idiota que em uma de suas primeiras experiências sexuais, consegue engravidar a namorada, apesar de todos os preservativos do mundo.
Ela se sente rejeitada. Ignorada. Magoada. Vai à enfermaria. Diz que tem dor de estômago. Consegue autorização para ir embora mais cedo.
Ele a vê recolhendo suas coisas e saindo no meio da aula. Vai atrás. A despeito dos protestos do professor autoritário.
Ela acelera o passo, ignora seus chamados, livra seu braço que ele havia alcançado com sua mão ansiosa.
Ele corre, se coloca na frente dela, não permite que se esquive.
Ela o empurra. Ele a sustenta.
Ela grita. Ele a abraça.
Ela tenta se desvencilhar. Ele fala palavras de conforto em seu ouvido.
Eles se abraçam. Tremem. Choram.
A bedel vem ver o que está acontecendo.
Em meio a explicações que não explicam, eles deixam a escola sem saber para onde seguir.
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Na sala de estar daquele apartamento de classe média, os três casais se sentam em postura de combate. Afundados no sofá, Lídia e Tobias agarram a mão um do outro, tentando manter firme a união de seres e de vontades.
Em cadeiras trazidas da sala de jantar, Carla e Ronaldo Franco, e Sérgio e Susana Martins se sentam eretos.
Os anfitriões, pais de Lídia, oferecem suco e petiscos para tentar transformar aquela situação surreal em algo menos tenso. Mas o olhar no rosto endurecido do pai de Tobias não esconde a raiva e o ressentimento que sente.
— Como vocês puderam deixar isso acontecer? — esbraveja Sérgio.
Carla, sensível ao tom acusatório, tenta conciliar: — Acho que eles entendem a gravidade da situação. Não precisamos fazer recriminações.
— Eu já tinha dito para a Susana que essa menina, que carregou nosso filho para aquele protesto na Paulista contra o nosso presidente, não podia ser boa influência. E agora isso?
Ronaldo, sem perder a calma ou o senso de humor, apenas debate: — Quem, aos 16 anos de idade, não quer mudar o mundo?
— Meu filho tem um futuro pela frente. Ele tem sonhos.
— Assim como a nossa filha. — interfere Carla, com menos paciência que o marido.
— Então me parece que a melhor coisa seria encerrar essa... situação. — Comentário de Sérgio que sua esposa, ao pegar sua mão, endossa.
— Essa não é a maneira que lidamos com problemas na nossa família. Eles precisam assumir a responsabilidade por seus atos.
— Mas isso vai arruinar a vida do meu filho!
— Assim como a da nossa filha. Afinal, é ela que está grávida. Mas nós achamos que eles têm plena condição de decidir o que querem fazer. É o futuro deles.
— Susana e eu conversamos sobre o assunto. Não vemos por que Tobias deva ser prejudicado por essa... por esse erro. Eu conheço um médico de confiança.
Ao ouvir isso, Tobias quase pula do sofá: — Parem com isso. Pai, por favor. Nós já tomamos uma decisão.
— Vocês não passam de crianças, e não têm a menor ideia do que seja melhor para vocês.
Carla intervém novamente: — Pois me parece que, se eles discutiram o assunto e chegaram a uma conclusão, o mínimo que podemos fazer é ouvi-los. O que vocês propõe?
Lídia, pela primeira vez entrando na conversa, diz rápido: — Nós vamos ter o bebê.
E Tobias: — E vamos nos casar.
— Não seja absurdo, Tobias. Você tem 16 anos de idade! Você não pode se casar.
— Eu a amo, pai. E com o consentimento de vocês, podemos sim.
— Nós nos informamos. — Lídia completa.
Carla, ainda intermediando, tenta avançar na solução: — Esse é um bom começo. Mas vocês compreendem as consequências do que vocês querem fazer? Aonde vão morar? Como vão se sustentar? E ao bebê?
E Sérgio vê a deixa para incluir: — E seus futuros? Como fica a universidade? Você acha que vai conseguir ser um grande arquiteto se seguir com essa loucura?
Ao que Lídia rebate de pronto: — Nós nos amamos. E juntos, vamos conseguir encontrar uma forma disso dar certo. Nós estávamos pensando que...
Sérgio a interrompe: — Que o que? Que nós é que vamos financiar essa loucura?
— Pai, pára! Estamos tentado fazer a coisa certa aqui. Não dá para, uma vez na vida, você me apoiar na minha decisão? Pelo menos nós nos amamos.
Susana sente nos ossos o tom recriminatório: — Meu filho, por favor, não fale assim.
Mas Sérgio não quer saber: — Amor, amor, existem coisas muito mais importantes a serem consideradas do que o amor. Amor não vai alimentá-los. Amor não vai pagar aluguel.
Mas Lídia não perde o compasso: — Não. Mas com amor nós conseguiremos fazer isso funcionar. Tenho certeza.
Tobias ergue a cabeça e continua: — Nós pensamos bem sobre isso. Falamos com a diretora da escola, e ela concordou que Lídia tire um tempo, depois que o bebê nascer, sem perder completamente o que já fez. Disse que encontraremos um meio termo, ficando para trás só um semestre.
Ao que Lídia completa: — Mas a condição é que nossos pais precisam concordar com isso. Ela quer ter certeza que teremos o apoio de todos vocês.
Sérgio é peremptório: — Não. De jeito nenhum.
Carla consulta Ronaldo com um olhar e concordam: — Acho que se vocês vierem morar com a gente…
— Talvez Tobias possa trabalhar comigo no restaurante quando não estiver na escola…
Mas Susana não quer saber de seu filho cheirando a gordura: — Esse não foi o futuro que planejamos para o nosso filho.
— Mãe, nada disso estava nos planos. Mas estamos tentando fazer o melhor que podemos aqui. Por favor. Será só por alguns anos, até as coisas se organizarem.
Carla olha bem para sua filha por um momento: — Você entende, meu bem, que ter um filho é um compromisso que durará muito mais do que alguns anos? Não sei o que vai acontecer com os seus sonhos de ser uma jornalista, ainda mais uma correspondente internacional, como você vive falando. Você está preparada para, talvez, deixar essa vida que tinha visualizado para trás?
— Ah, mãe, acho que esses sonhos ficaram em segundo plano agora, né? Mas quem sabe mais pra frente?
— Sua mãe tem razão, menina, não tem essa coisa de mais para a frente. O momento é agora. Se vocês tiverem esse bebê, a vida de vocês vai se resumir a cuidar dele. O tal do amor, que vocês têm em tão alta conta, vai arruinar o futuro de ambos.
Mas Carla, ao ver a forma como o jovem casal se apóia e se defende, compreende algo mais: — É, vai ser certamente difícil, mas não sei. Acho que algumas histórias começam do começo, sim, mas outras começam do meio, ou mesmo do fim. E depois, com o tempo, competirá a vocês retraçarem seus passos para atender àquelas outras necessidades, que acabaram ficando de lado. É. Acho que isso pode dar certo sim.
— Obrigada, mãe. Nós sabemos que devíamos ter tido mais cuidado. Nós usamos camisinha...
Sérgio, agora puto, solta: — É o caralho!
— Pai. É isso o que nós queremos. É o meu futuro, afinal. E faculdade de arquitetura nenhuma vai ser mais importante do que a Lídia e o nosso filho. Ou filha.
Todos ficam em silêncio. Até aquele momento, a possibilidade de uma saída alternativa ainda figurava na mente dos adultos, mas a segurança nas palavras do rapaz não permite manter qualquer ilusão. Aquele bebê virá ao mundo, e aquele casal, jovem e inexperiente, será responsável por criá-lo.
Sérgio se contorce na cadeira, tentando encontrar segurança na alternativa que propõe: — Eu concordarei com esse plano absurdo de vocês. Se você prometer que irá para a universidade como planejamos. Você pode trabalhar meio período com ele, mas depois que terminar o colégio, vai estudar arquitetura no período noturno. É isso ou nada feito.
A ruga na testa de Ronaldo mostra melhor do que suas palavras como ele se sente: — Isso não me parece muito realista.
— Nada disso é realista. Mas essa é a minha condição. Eu aceito o casamento e ofereço apoio financeiro, contanto que ao menos o meu filho siga com os planos de ter uma profissão de verdade. Isso até será melhor para eles, a longo prazo. E depois que ele se formar e tiver uma carreira firme, tenho certeza que Lídia também poderá recuperar o tempo perdido.
Carla parece incerta, mas a decisão não é dela: — Vocês dois é que sabem. O que querem fazer?
Tobias aos poucos assimila as consequências das palavras de seu pai e, após a troca de um longo olhar com Lídia, aceita: — Acho que consigo.
— Tem certeza?
— Sim. Vai ser difícil. Mas acho que isso tornará as coisas ainda mais difíceis pra você, linda. Você acha que dá conta?
— Acho que sim. Pelo menos vamos estar nessa juntos.
— Sim. Acho que, se formos nos apoiando, pode dar certo.
— É. Acho que pode dar certo.
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Uma vez tomada a decisão, tudo acontece com uma velocidade arrasadora. O acordo com a escola significa que, enquanto ainda consegue, Lídia precisa adiantar matérias do semestre seguinte para não ficar muito para trás.
A cerimônia de casamento civil fica opaca quando comparada com as mudanças no corpo dela, com as novas responsabilidade dele no restaurante do sogro, com o adaptarem-se a morar juntos sob o teto dos pais dela, de acordo com as regras dos pais dela e sob o olhar vigilante e implacável dos pais dele.
As únicas fatias de vida que permitem que voltem a ser Lídia e Tobias são os passeios ao Pico do Jaraguá, quando tomam um momento para verem a cidade, e a realidade, sob uma perspectiva que, no meio do furacão, não conseguem ter.
A árvore deles, cumprindo seu papel, os acolhe e protege como consegue, absorvendo os medos e lágrima e dando ânimo para seguirem.
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Eles chegam à árvore, Lídia sem fôlego, enorme, suada. Tobias já com a garrafa na mão antes mesmo que ela lhe peça um gole. Ele a ajuda a se sentar e depois deita com a cabeça em suas pernas inchadas.
— Está quase.
— Pois é! Com medo?
— Pra caralho. E você?
— Sei lá.
— Mas vai dar tudo certo.
— É. Vai dar tudo certo.
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Tobias e Lídia andam pela trilha até o mirante que dá vistas à cidade. Andam de mãos dadas, enquanto ele carrega a recém-nascida em um sling.
— Foi aqui que tudo começou, pequena Dora.
— Foi aqui que nós te fizemos, filhinha.
O cinzento da cidade nem parece tão opressor em um dia de céu azul bem claro. Lídia se espreguiça, alongando o corpo ainda com as marcas da gestação. Um braço de Tobias envolve sua cintura, a puxa e acolhe em um abraço que faz de Dora o recheio do sanduíche.
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De longe, em um dia nublado, parece que Tobias e Lídia descansam com as costas apoiadas na árvore deles. Ela dando de mamar para o bebê.
A cabeça dela, que desaba para o lado se alojando no ombro dele, mostra que na verdade estão dormindo. Os três.
Dora, ainda com o bico do seio da mãe na boca, já não se dá ao trabalho de sugar o leite.
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Conseguem dar uma fugidinha para passear, empurrando o carrinho do bebê e já vestidos para a festa de daqui a pouco. Lídia tira da mochila um embrulho.
— Presente de formatura!
— Obrigada, linda! Não acredito! Não precisava.
— Claro que precisava. Não só pela formatura do colegial como pela entrada na universidade.
— Ano que vem vai ser você.
— É. Eu sei.
— Você se arrepende?
— De jeito nenhum.
— Eu tô tão cansado. Certeza que quer ir na festa?
— Eu também, meu amor, mas temos que aproveitar para comemorar quando podemos.
— Te amo.
— E eu amo você.
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Sozinha, Lídia empurra o carrinho com Dora até a árvore. Ela se certifica de que a filha está bem coberta, se senta e abre um livro enorme no colo.
Dora faz um barulhinho que a leva de volta ao carrinho: — Estamos com saudade do papai, né meu amor? Ele anda tão ocupado entre restaurante e faculdade que mal tem tido tempo de vir aqui com a gente. Mas já já chegam as férias de julho e daí podemos passar bastante tempo juntos. E enquanto isso, preciso ir me preparando para voltar para a escola no próximo semestre. Bons sonhos, pequeninha.
Ela retorna ao reino dos conhecimentos acadêmicos, mas não antes de dar um suspiro profundo para encontrar a concentração e o ânimo.
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Da próxima vez, todos brincam com seus respectivos livros, à sombra da árvore querida naquela quente manhã de sábado.
Dora, no tapete de piquenique, aperta os botões no livro que conta para ela o barulho que cada animal faz. Lídia tenta decifrar as lições de química orgânica para a prova da próxima semana. E Tobias se debruça em seu Guia de Técnicas de Desenho Urbano com a avidez de quem descobre um novo universo.
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Numa manhã fria e chuvosa, Lídia chega sozinha, correndo, quase tromba com a árvore e desaba a seus pés. A respiração acelerada a deixa sem fôlego. A primeira lágrima rompe a barreira da negação e desce seu rosto congestionado.
— Merda, merda, merda.
Ela tira do bolso da jaqueta o teste de gravidez e fica olhando, incrédula, o sinal de positivo.
— O que que eu faço? Merda. Isso nunca podia ter acontecido!
Com a cabeça entre as mãos: — Nós tomamos tanto cuidado. Que merda!
Ela olha para o alto, inspira fundo, tenta trazer um pouco de calma aos sentimentos.
— O que que eu faço? Não podemos ter outro. Não agora. Não quando ele está tão feliz, conseguindo conciliar a faculdade e o trabalho. Não quando acabo de fazer minhas provas finais e tenho certeza que consegui me formar. Está tudo bem! Demos um jeito de superar todas as dificuldades. A Dora está feliz. Até o Sérgio está mais ou menos contente com nossa decisão. E agora isso? O que que eu faço?
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O dia lindo não compreende as roupas pretas, as olheiras e o rosto inchado com que Tobias empurra o carrinho de Dora. Ao chegar à árvore, trava as rodinhas para que sua filha fique onde está e encosta a testa no tronco. Da sua árvore. A árvore deles. Seu refúgio. Sua testemunha. Sua protetora.
Sem saber o que mais fazer, afasta a cabeça e a bate com força contra a madeira. Bate de novo. E de novo. Na esperança de que essa dor ultrapasse o desespero daquela outra. Quando abre os olhos e vê uma marca de sangue no tronco querido, seus joelhos cedem e ele meio que senta, meio que desaba no chão.
Nem ao menos consegue chorar. Seria melhor se deixasse as lágrimas rolarem, mas não tem forças nem para isso.
— Por que? Por que você não me contou, Lídia? Por que?
Ao som da voz do pai, Dora começa a chorar. Com as costas contra a superfície áspera, Tobias usa o pé para chacoalhar o carrinho, tentando acalmar a filha.
Como um autômato, segue chacoalhando e falando com a árvore, na esperança de ser ouvido.
— Se você tivesse me dito, podíamos ter encontrado uma solução juntos. De alguma forma. Um segundo bebê teria sido complicado, concordo. Mas juntos, a gente podia ter se apoiado, argumentado, se confortado. E se essa fosse mesmo a nossa decisão, poderíamos ter encontrado um médico confiável. Sua cabeça dura. Tinha que decidir sozinha? Que merda, Lídia! Eu não precisava que você me protegesse da decisão. Eu precisava de você aqui. Agora. Como vou fazer isso sozinho? Criar a Dora. Viver. Por que você não confiou em mim? Por que você não confiou no nosso amor? Essa era a única consideração que importava. E agora...
As palavras são levadas pelo vento forte que agita os ramos da árvore querida. Apesar de sua solidez, a árvore não pode abraçá-lo de volta ou ninar o bebê.
Ele sente a dureza do tronco e a frieza de seu toque, e o cinzento do dia se mistura à tristeza do concreto e ao vazio que encontra no peito e em seu futuro.
FIM
Nota
Tragédias Paulistanas é uma série de contos inspirados por fatos reais, mas que não deixam de ser ficção.
Quando a realidade desengatilha a minha imaginação de qual seria a potencial história por trás dos acontecimentos, surgem contos que não são nem totalmente verdadeiros, nem totalmente inventados.
Espero que tenham gostados. Outros virão, em algum momento.
Por agora, desejo a todos um ótimo final de ano, e que o novo ciclo nos traga fôlego para seguir criando, imaginando, crescendo e evoluindo.
Muito obrigada por compartilhar comigo esse espaço.
E até a próxima.