Uma experiência chamada Vipassana
Sempre dá uma acelerada no coração quando embarco em mais uma experiência desconhecida. E o ano de 2014 foi cheio delas.
Olá! Meu nome é Pat Tischler e In-Sight é a newsletter onde divulgo os vários tipos de textos e histórias que escrevo. Para quem acabou de chegar, bem vindx! Se quiser saber um pouco mais sobre mim, aqui está o link para o meu primeiro post, onde conto um pouco sobre a minha trajetória. O texto de hoje é uma história verídica, em português, sobre as intensas experiências que tive em um retiro de meditação.
Já comentei algumas vezes sobre as licenças não-remuneradas que tirei do meu cargo público, na busca de novas formas de viver minha vida. A primeira delas foi entre os anos de 2013 e 2016, e 2014 foi o ápice das investigações e descobertas.
Esse talvez tenha sido o ano mais feliz e mais aterrorizante da minha vida, pois não tinha um plano, um objetivo, nem mesmo uma linha clara do que procurava. Apenas procurava algo. E aceitando a minha ignorância, a única coisa a fazer foi seguir minha intuição, e confiar que a vida colocaria em meu caminho os desafios e aprendizados de que eu precisava.
Esse foi o ano em que fui para o Sri Lanka, objeto do post "Sobre o Vietnã, o Sri Lanka e o nascimento - ou descoberta - da minha criatividade"; esse foi o ano em que expandi minhas opções e aprendi um monte sobre yoga, sânscrito, acroyoga, wùo täi, massagem tailandesa, entre tantas outras vivências. E, como o nome do post já indica, esse foi o ano em que participei de um retiro de meditação de 10 dias chamado Vipassana.
Para quem não sabe, "Vipassana é uma forma de auto-transformação através da auto-observação. O foco está na profunda interconexão entre mente e corpo, que pode ser compreendida pela atenção disciplinada das sensações que formam a vida do corpo físico, e que condicionam continuamente a vida mental." (tradução livre da definição encontrada no site https://www.dhamma.org/en-US/about/vipassana).
Confesso que, até aquele momento, nunca havia me interessado. Mas aprendi a confiar nas oportunidades que aparecem na minha frente vezes demais para serem ignoradas. E como normalmente acontece nessas situações, uma vez que me abri para a possibilidade, as coisas aconteceram de forma fácil e sem entraves.
O lugar que escolhi ficava na ilha de Java, pois eu iria passar dois meses em Bali, e esse era o centro mais próximo que teria um curso aberto na época em que eu teria disponibilidade. Em questão de umas poucas horas, já estava inscrita e com passagem comprada.
E aqui inicio o meu relato:
Estou acostumada a me localizar no meio do caos do desconhecido. Desembarco na ilha de Java com minha mochila, já me dirigindo ao local pré-estabelecido para encontrar uma das muitas vans que levavam os recém-chegados ao centro Dhamma. Rodeada de turistas estrangeiros, sempre cruzo o olhar com um ou outro, naquele instante passageiro de reconhecimento do aventureiro que existe em cada um de nós, apenas para seguir o fluxo inevitável de pessoas e seus rumos.
Também já me acostumei com os olhares curiosos que provoco em certos locais, especialmente na ásia. Não por que minha aparência seja particularmente chamativa. Creio que por ser diferente o suficiente dos locais, mas comum o suficiente sob o ponto de vista geral, para gerar especulações sobre minha procedência.
O caminho de uma hora e meia montanha acima é feito entre poucas trocas de informações com meus companheiros de viagens e longos olhares especulativos pela janela, tentando absorver algo das paisagens por onde passo. Já não me recordo dos rostos e nomes, mas lembro que esse pequeno grupo, uma amostra do que eu lá encontraria, era bastante heterogêneo, tanto no quesito nacionalidade, quanto na experiência dos participantes.
Apesar da expectativa, não fico ansiosa. Desenvolvi, ao longo dos anos de pé na estrada, um "modo viagem" que me mantém presente no caminho e que deixa para o momento da chegada a avaliação do que será dali para frente. Também sei que esse tipo de evento está preparado para o comparecimento de dezenas de pessoas despistadas, como eu, então sigo o rebanho e a sinalização, no passo a passo de registro, orientações iniciais e localização do local onde morarei pelos próximos 10 dias.
Um quartinho simples e limpo. Uma cama com colchão fino, travesseiro e lençóis. Nada mais. Uma janela pequena e quadrada com grade, que dá para o jardim também simples. Um banheiro compartilhado, no final do corredor. Apenas uma privada e uma pia. Simples.
Chuveiros são em outro corredor, como um vestiário, no estilo que já havia utilizado na Índia de uma torneira de água fria, um balde grande para deixá-la correr, e um baldinho para jogá-la no meu corpo. Se quisesse água quente, teria que acionar o aquecedor a gás do lado de fora e esperar de 15 a 20 minutos para que esquentasse.
Simplicidade está na essência da estadia. Das acomodações às refeições. E eu ainda sou uma das "sortudas" que, por ser iniciante, tenho direito ao café da manhã, almoço e um lanche leve no final da tarde. Aos estudantes com mais de um retiro, somente as duas primeiras são permitidas.
Uma das regras principais a que estávamos submetidos era o total e completo silêncio. Ele se estendia até a gestos e outras formas de comunicação, tendo sido uma das orientações que mantivéssemos os olhos baixos e evitássemos o encontro de olhares.
O maior medo que tive antes de chegar foi o de não suportar as dores no corpo. Pois, afinal, passaria 10 dias em uma rotina que proibia exercícios físicos (fora uma eventual caminhada leve), e que compreendia um total de 11 horas diárias sentada meditando, ou assistindo aos vídeos do mestre Goenka.
Quaisquer estímulos externos foram deixados do lado de fora, inclusive livros, materiais de escrita e minha preciosa prática de yoga. A rotina iniciava-se às 4 horas da manhã e terminava às 9:30 da noite, em um suceder de meditações obrigatoriamente no hall principal, e meditações que poderiam ser feitas no hall ou no quarto, de acordo com as orientações do professor.
Os primeiros 2 ou 3 dias foram focados em acostumar meu corpo e minha mente a essa rotina exigente. Foi com uma certa surpresa que descobri que meu corpo, treinado por anos de ashtanga yoga, conseguia suportar razoavelmente bem as horas sentado. A comida, se não particularmente saborosa, fazia o seu papel de me dar sustância. O silêncio foi, desde o início até o final, a minha parte favorita daquela experiência. E me pareceu que eu conseguiria passar pelo retiro sem grandes dificuldades.
Já que não tinha a possibilidade de fazer qualquer atividade fora das pré-estabelecidas, acabei desenvolvendo um pequeno ritual que me dava ao mesmo tempo prazer e um sentimento de que eu ainda era eu: todos os dias, assim que acabava de almoçar, ia até o vestiário vazio tomar banho e lavar os cabelos. Sempre gostei de lavar os cabelos, mas naquele retiro, naquele lugar, naquele momento, essa se tornou a coisa que mais amava no mundo inteiro.
E, detalhe, acabei tomando banho gelado todos os dias. Primeiro, pois o tempo estava razoavelmente quente para permiti-lo. Segundo pois desperdiçar 15-20 minutos da minha preciosa hora de descanso após o almoço me parecia inconcebível. E, por fim, pois comecei a sentir um bem-estar enorme ao deixar o meu corpo se acostumar com a diferença de temperatura, o sangue circulando com mais vigor em meus membros cansados de ficarem imóveis.
Ao final, o cabelo molhado dava a impressão de alongar aquele momento delicioso, formando uma nuvem de humidade e limpeza ao meu redor, que eu carregava para a próxima meditação.
Sempre soube que sentar para meditar é um desafio. E ali não podia ser diferente. Se estava frio, a mente obsecava com o fato de estar frio. Se estava calor, a mente obsecava com o fato de estar calor. O fio de suor que descia as costas. A mosca que pousava bem naquela parte em que a pele estava a mostra. E daí, tinham os barulhos.
Puns, arrotos, pigarros, tossidas, fungadas, farfalhar de tecidos. A pontada no joelho causa preocupação. Que é substituída pelo pânico de que o adormecimento de uma parte inteira da minha perna fará com que eu tenha que me levantar. Dói. Dá angustia. Os gritos mentais são ensurdecedores. Mas passam.
Tudo passa. Essa é a grande lição.
Tudo muda o tempo todo o tempo todo tudo muda continuamente em uma transitoriedade sem fim.
E a realização da veracidade desse ensinamento no meu próprio corpo, nas minhas juntas, músculos, nervos, fez com que ela fosse absorvida com uma total falta de dúvida. Ou assim eu achei.
Pois, como não podia deixar de ser, quando chegou na metade do caminho, caiu a ficha de que ainda faltava muito tempo ali. Meditando. E nada mais. O quinto dia trouxe uma diarréia que durou o restantes do retiro. Não acredito que tenha sido culpa da comida, mas da minha mente que, enfim, começara a se debater, desesperada, dentro daquela jaula de silêncio e imobilidade.
Imobilidade que, a partir do sexto dia, intensificou-se, com duas meditações diárias em que éramos orientados a não nos mexermos durante uma hora, cada. As caminhadas ao redor do jardim se tornaram mais velozes, como se minhas pernas tentassem fugir da minha mente em pânico.
Mente em pânico que tratou de promover uma fuga, refugiando-se nessa imaginação que, hoje, escreve histórias de ficção conscientemente, mas que na época transformava em ficção desejos desesperados de mudar a minha realidade da única forma que eu podia: internamente.
O meu interesse romântico da época figurou em muitas dessas fantasias, meu idealizado companheiro e a vida que criaríamos juntos. Assim como a sonhada alforria definitiva da minha carreira de funcionária pública, a criação de uma persona professora de yoga, fotógrafa e escritora que conseguiria se sustentar com as atividades que ama, e assim por diante. Sonhos esses que vinha acalentando antes. Há muito tempo. Mas que, até então, eu achava que me moviam para a frente, como metas e direções, ao invés de me manter amarrada e separada do que era real.
Essa tendência, a de criar ilusões mentais para a minha realidade, é algo que faço desde criança. Um subterfúgio que me permitia conviver com situações que me machucavam ou que eu não conseguia assimilar. Ilusões e, durante uma certa época, também o álcool.
Foi exatamente essa tendência criativa que, alguns anos depois, resolvi transformar conscientemente em histórias de ficção, que passaram a formar os meus roteiros, livros e contos. Mas que, naquele lugar, naquele momento, daquele modo, provocaram um surto que atingiu até mesmo as minhas entranhas.
Surto que jamais poderia ser detectado exteriormente. No plano físico, eu continuava comparecendo a todas as meditações, sentada, imóvel, com uma aparência serena. Mas, internamente, estava em absoluto alvoroço, entre desejos irreais e histórias que eu esperava ver tornarem-se realidade quando dali saísse.
Para a minha sorte, anos em cima do tapetinho de yoga me ensinaram a me observar, e consegui perceber o que estava acontecendo. Não que isso me permitisse impedir a euforia mental. Mas passei a gastar ao menos parte do meu tempo observando o que acontecia, como se houvesse um terceiro ser dentro de mim, distinto daquela pessoa que estava sentada, distinto daquelas vozes internas desordenadas. Como se fosse um narrador onipresente que conta aos leitores: veja só a confusão que a nossa protagonista está se metendo.
Não tenho uma memória clara dos dias que se seguiram, só sei que não consegui sair desse ciclo viciado. O melhor que pude fazer foi separar momentos para a observação do caos. Mas me lembro vividamente do último dia. Do dia em que deveríamos limpar tudo para ir embora. Mas no qual, antes, deveríamos socializar, voltar ao convívio humano, falar.
Pela primeira vez, tivemos a liberdade de conhecermos nossos colegas, até então invisíveis. E não me surpreendi ao perceber que procurei o canto mais isolado do jardim, assim que ouvi as primeiras palavras serem proferidas.
O silêncio foi meu maior presente no vipassana. Até aquele momento, jamais tinha tido a oportunidade de compreender o quão importante ficar em silêncio é para mim. Que tipo de relaxamento ele me permite. A qualidade da conexão interna que ele inicia.
Tudo bem, o resultado acabou sendo bastante confuso. Mas ali tive o vislumbre de algo que, depois, fui desenvolvendo, aperfeiçoando e cultivando, que são os meus já mencionados momentos de silêncio que abrem o espaço para a minha atividade criativa.
Naquele canto do jardim, tudo o que lembro de ter pensado é: não tenho nada para dizer. Até que uma moça gentil, que me viu isolada e veio sentar-se ao meu lado, perguntou de onde eu era e tudo se desenrolou naturalmente dali em diante.
No salão de café da manhã, fomos colocados em mesas de quatro pessoas e, pouco a pouco, começamos a destravar a língua e a mente, voltando ao mundo dos que conseguem se comunicar. Muito sábio permitir que nos reacostumassemos à vida em sociedade, antes de nos jogarem de volta ao mundo real.
Algumas pessoas que conheci naquele momento, levei para fora do vipassana. Com uma delas, ainda mantenho contato até hoje. A minha irmã francesa, como ficamos conhecidas.
É engraçado pensar que, para os orientais, pode ser difícil diferenciar nossas feições. Então quando um rapaz e uma moça indonésios vieram falar comigo, e a primeira coisa que disseram foi "Ah, então tem duas de vocês! Têm que ser irmãs!", quase engasguei de susto. Eles me apontaram a quem estavam se referindo e, após alguns minutos de papo, os deixei para ir conhecer a tal irmã que não sabia que tinha.
Anos mais tarde, quando decidi estudar para ser roteirista, escrevi para a minha irmã francesa contando a novidade pois, naquele primeiro encontro, ela me contara que era roteirista e diretora de cinema, além de tantas outras coisas que aquele ser multi-versátil fazia.
Creio que o caminho de volta ao aeroporto foi feito num tagarelar entusiasmado, cada um compartilhando suas impressões. Lembro que a tal moça gentil que veio me resgatar quase desistira e pedira para ir embora, o que não é permitido.
Eu, de minha parte, fiquei feliz com o fim daqueles 10 dias. Mas até hoje descubro detalhes e consequências do que foi iniciado ali, no ano de 2014, na ilha de Java, em um retiro de meditação uma hora e meia afastado da capital indonésia.
De lá segui adiante, mas aqui estou, recordando, até certo ponto revivendo e me maravilhando com a oportunidade de contar, agora com um certo distanciamento, essa situação tão peculiar por que passei. Mesmo se, de lá para cá, não tenha sentido o impulso de participar de outro retiro como esse.
Vida no aqui e agora: Bem-vindo, 2024. Agradeço a virada de ano. Eu precisava desesperadamente que 2023 acabasse. Mesmo que tenha me trazido tantas situações, pessoas e oportunidades maravilhosas, foi um ano em que cheguei ao limite do burn-out.
Flutuar é viver: aqui em Copenhague, enfim consegui retomar uma atividade que adorei da única vez que experimentei nos idos de 2014: o floating. O que nada mais é do que uma banheira de água muito salgada, dentro de uma capsula completamente fechada, onde não entra luz nem som. O simples ato de boiar durante uma hora, sem sentir o peso do corpo e sem quaisquer estímulos sensoriais, provoca um relaxamento e uma limpeza do sistema nervoso como nada mais que eu já tenha experimentado. Já entrou para as minhas rotinas regulares de auto-cuidado. Recomendo!
O paradoxo do lixo: começo aqui dizendo que sou uma praticante e grande defensora, há umas tantas décadas, da seleção e reciclagem de lixo. Mas o stress que esse processo tem provocado, aqui na Dinamarca, é sem precedentes. Não basta seguir as diretrizes, nem sempre muito claras, de como fazer a separação dos resíduos. O sistema, partindo da correta noção de que devemos consumir menos embalagens que precisarão ser recicladas, não leva em consideração que a compra de qualquer produto, seja lá qual for, mesmo que seja um reles tomatinho, envolve plásticos e papelões que precisam ser descartados. Não há alternativa. E agora eles reduziram pela metade as vezes em que vêm recolher o lixo da casa onde moro, o que me parece contrário a uma questão bastante importante chamada saneamento básico. O que eles querem é que nós, consumidores finais, saiamos carregando o tal lixo até depósitos longínquos, fazendo assim o trabalho deles mas sem resolver o problema, já que o lixo continua sendo criado e tendo que ser descartado. Essa tem sido uma fonte de pesadelos, desde a minha mudança para este país de primeiro mundo.
Obrigada pela leitura. Essa newsletter não existiria sem você do outro lado.
E até a próxima.
Que demais, Pati! Sempre lembro de você pra cima e pra baixo naqueles anos e morro de curiosidade de ouvir as experiências que você teve. Obrigada por dividir com a gente. Meu companheiro fez mais de dez retiros destes de vipassana, e foram super importantes pra ele. Eu, por outro lado, sempre tive vontade mas nunca rolou - vai entender? Um beijo bem grande e força aí nas reciclagens